sexta-feira, setembro 30, 2005

Quixotesco

Manuel Alegre assumiu definitivamente o papel de D. Quixote e decidiu avançar sozinho para Belém. Já não conta sequer com o apoio de dirigentes do PS que ainda lhe permaneciam fiéis depois da declaração de candidatura de Mário Soares mas que acabaram por abandoná-lo em nome da disciplina partidária. Aliás, não perdeu tempo em comunicar- -lhes a decisão, talvez por saber que já não podia contar mais com eles. Ou sobretudo porque preferiu levar até ao fim a ficção do seu já famoso conto O Quadrado e vestir a armadura da solitária personagem épica que é o seu alterego.

Alegre é confortado por algumas sondagens que valorizam o potencial da sua candidatura e até o creditam como o candidato da esquerda que poderia obter um melhor resultado contra Cavaco na segunda volta. Perante um Cavaco ganhador, de forma esmagadora, em qualquer cenário, Alegre teria pelo menos a consolação simbólica de ultrapassar Mário Soares, apesar do apoio do aparelho socialista ao ex-Presidente. Acontece, porém, que Alegre aposta ainda na possibilidade de sair triunfante da peleja derradeira. Aparentemente, ele acredita no poder mágico do gesto poético que redime até o motivo inconfessável do seu combate (e do seu ressentimento). Um motivo chamado Mário Soares.

A fidelidade afectiva não é, decerto, um argumento para os que vêem a política como um universo onde apenas imperam a frieza e o cinismo das razões. Mas representa uma das poucas âncoras que restam em tempo de crise de valores. Soares menosprezou o capital dos afectos - que sempre foi a sua maior arma política - ao tratar Alegre como um trapo velho. Isso não passou despercebido aos eleitores e Alegre tornou-se o grande calcanhar de Aquiles da campanha de Mário Soares. Mesmo que ainda acabe por desistir do combate contra os seus moinhos de vento, Alegre já relegou Soares para o papel de Sancho Pança.

por Vicente Jorge Silva in DIÁRIO DE NOTÍCIAS

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